sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Máquinas de escrever

Foi com 45 anos e numa Europa em crise, mas que se movimenta para todo o lado e que integrou o conforto como obrigatório, que li o (clássico) Pela Estrada Fora. Será coincidência ter sido em período de Erasmus? Como se fosse uma viagem mais que geográfica, através do tempo? Do tempo antigo, do tempo perdido, do tempo alheio, do tempo eterno? Não sei, mas aconteceu assim.
Dei-lhe com os olhos numa prateleira lá de casa onde me andava a passar despercebido há anos (tem o preço marcado em escudos). Como tenho sempre as janelas abertas, a crise escapuliu-se para dentro da minha casa, assentou arraiais e ando a reler, ou a ler tudo o que me aparece de graça. E lá estava Jack Kerouac ou Sal Paradise ou uma máquina de escrever humana sorrindo-me numa estante.
A leitura foi terminada no último dia em Madrid. O que é que se costuma dizer das coincidências…?
Li-o no abafado do metro, nas paragens de autocarro, antes de adormecer e andou sempre comigo na mala, como uma espécie de bilhete de despedida de suicídio dum tipo de vida, que se hesita em usar.
No último dia, dando as últimas voltas a fazer tempo para apanhar o avião, vejo uma loja com máquinas de escrever antigas. Há uma que me olha de soslaio, pequena mas carregando milhares de impressões digitais de não sei quantas pessoas, atrevo-me a dizer homens: foi fabricada em 1904 e usada na guerra. O teclado é normal mas na verdade cada tecla escreve um outro carácter, cuja correspondência está atrás como se fosse em Braille, de modo a dificultar a desencriptação das mensagens. Não era a Enigma, mas garantidamente era da família.
É amor à primeira vista. Entro na loja com o pensamento dividido e rezando para que o Dean Moriarty que vive em mim esteja a dormir. A minha principal prece é que seja barata, mas tenho a consciência que não será. Quando souber o preço saberei sorrir, agradecer a informação e voltar costas? Ou serei acometida por aquelas loucuras que só parecem loucuras dias ou meses mais tarde e que enquanto estão a ser praticadas vestem-se como actos naturais e até saudáveis?
A montra onde a máquina crescia para mim estava tapada do lado de dentro por um pesadíssimo biombo em ferro, tosco, dir-se-ia chegado da própria Idade do Ferro. A dificuldade em chegar à máquina e saber-lhe o preço seria um sinal? E que sinal? Que não esperasse e me fosse embora? Ou um teste à minha persistência, com prémio no fim?
Finalmente o biombo foi afastado e a máquina retirada da montra como se fosse uma pessoa resgatada dum desmoronamento.
O coração acelerava como se tudo aquilo fossem os preliminares dum pedido de casamento, com algumas hipóteses de se concretizar ali e agora. Mas 349 euros era um dote muito elevado para mim, embora a princesa valesse muito mais.
Olhei-a como um marinheiro apaixonado mas que não quer comprometer-se pois desconhece a sua sorte por esses mares e não sabe se regressa, e abandonei a loja com o coração partido.
Há anos atrás, em busca duma casa para morar, visitei um apartamento belíssimo, último andar, duplex, piso superior todo modificado, revestido a madeira, uma pérola. O preço era alto e tentámos negociar com os donos. Numa das ocasiões, talvez numa terceira visita à casa, vejo no chão uma máquina de escrever. A bem da verdade, eu não a vi, foi ela que me chamou e dei comigo instantaneamente a dizer aos donos, e ao meu boquiaberto marido, que se deixassem a máquina nós pagávamos sem regatear. No dia seguinte telefonaram a dizer que não aceitavam e, apesar da desilusão, conseguiram subir na minha consideração. A casa só não tinha vista para o mar, caso contrária seria perfeita.

Escândalo com o teletransporte

A transportadora Europa está envolvida num novo escândalo depois do último telepassageiro ter desaparecido quando era teletransportado de Londres para Washington. A empresa já emitiu um comunicado a informar que Joshua Martin não chegou ao destino nem a qualquer outro ponto com cobertura de teletransporte, como tinha sido inicialmente sugerido, quando se pensou ter havido um erro de coordenadas que tivesse colocado o empresário londrino em Nova Iorque ou até em Toronto, como chegou a ser noticiado.
É a terceira vez no espaço de um mês que a Europa regista perda de telepasseiros: o primeiro, um arquitecto japonês, foi encontrado a vaguear na Cidade do México; há cerca de duas semanas uma funcionária da Organização Mundial de Saúde desapareceu quando se teledeslocava de Paris para Pequim e foi encontrada dois dias depois em Xangai.
O caso de Joshua Martin foi já comentado por responsáveis de diversas companhias de aviação que reforçam as suas posições contra o uso deste meio de transporte e são unânimes em dizer que não há estudos de segurança suficientes para abrir o teletransporte à sociedade civil. Por seu lado a Europa aponta empresas concorrentes, e não completamente legais, como as causadoras destes problemas. O Presidente da transportadora Europa afirma mesmo que ‘As empresas ilegais, que não querem cumprir com todos os requisitos necessários, que não têm equipamento tecnológico à altura, não se preocupam com os clientes; garantem preços baixos, mas não têm respeito pela vida’.

Notícia de Setembro de 2031

Ave César

O artista plástico César inaugura hoje uma exposição de trabalhos que alia a actual técnica inwall com a quase desaparecida fotografia. É grande a expectativa sobre o visionamento de imagens interactivas da Baía de Cascais ou do Portinho da Arrábida, locais de eleição dos veraneantes até há uma década atrás e hoje desaparecidos.
O momento real da abertura da exposição, intitulada ‘Era uma vez o mar’, será às 19 horas de Lisboa e para a acompanhar o leitor deve ter a sua parede de recepção de inwall disponível.
A agência Rainha de Copas, responsável pela organização, pede ao público, que se prevê serem vários milhões de pessoas, que não façam perguntas a César e respeitem o círculo amarelo que o rodeará no inwall. Os motivos do pedido são compreensíveis pois, apesar de o irmos ver com toda a dinâmica a que nos habituou, sabemos que na realidade está hospitalizado e será do Hospital Central via inwall que participará na inauguração.
‘Há apenas duas peças que não receberam pedidos de aquisição’, são afirmações da organização que mantém a decisão de não vender nada enquanto César não recuperar completamente e dispuser das mãos protésicas que lhe foram substituídas. A cirurgia foi um êxito, como amplamente noticiado, e nós desejamos rápidas melhoras.

Notícia de Setembro de 2031

Faça-se luz!

A criadora Rita Gata Brava e a empresa de software Lusitana apresentam a sua última criação em conjunto: vestuário feito de energia eléctrica.
Em entrevista Rita Gata Brava falou da modernidade do conceito que permite ‘ir trabalhar com um look, almoçar com outro e aparecer num jantar deslumbrante, sem precisar de ir a casa mudar de roupa’. Os equipamentos, já conhecidos por Prêt a Porter, pesam cerca de 100 gramas, e com um simples toque solidificam camadas de energia no corpo humano, em formas pré-seleccionadas de roupa, com cores e padrões ao gosto do utilizador.
Rita cumpre assim a promessa de fazer vestuário dinâmico e que se adeqúe aos seus já conhecidos penteados feitos com recurso a hologramas e que estiveram igualmente presentes na mostra.
A Lusitana escolheu o terminal de transportes terrestres e aéreos de Sintra para este lançamento mundial no qual estiveram presentes Jennifer e Phoebe Gates, filhas do falecido Bill Gates, apesar da sua empresa não ter conseguido competir com a lusitana Lusitana e a quem Rita Gata Brava disse Não.
Ainda não se sabe o valor de comercialização do Prêt a Porter, mas a conhecida empresa de software portuguesa já informou que ‘será um produto para consumo de massas’, prevendo-se assim, que tenha um custo acessível.
A criatividade e a tecnologia portuguesas continuam de mãos dadas e a dar novos mundos ao mundo.

Notícia de Setembro de 2031

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Tradição no Jardim Botânico

Vou ao Jardim Botânico comprar um livro de desenhos de Mutis. Na entrada explico que não tenciono visitar o JB mas apenas aceder à Biblioteca, Livraria, Centro de Documentação, o que seja. A rapariga que vendia as entradas diz-me que não há nada disso no JB e aponta-me uma barraca que vende pacotes com sementes e folhetos explicativos da melhor altura para plantar ervilhas-de-cheiro. Digo-lhe que o que procuro não está decididamente ali, mas ela continua a indicar-me a loja das plantas enquanto me faz sinal para que me desvie pois a fila cresce atrás de mim. Insisto, digo-lhe que estão à minha espera! Acreditou na minha mentira e lá agarrou no telefone conseguindo fazer-me até sorrir pois disse que estava ali uma ‘chica’ que procurava a livraria ou a biblioteca. Lá a esclarecem e com um pedido de desculpa indica-me a localização: fica exactamente do lado oposto onde estávamos. Vou até lá e sou recebida como se fosse a própria Rainha Sofia: era a única cliente.
Depois duma agradável conversa com a bibliotecária, de me ter informado que tudo o que eu queria estava online com as respectivas indicações para a autorização de publicação, de me ter oferecido lâminas com imagens, uma delas belíssima, com a correspondência que Lineu fez da botânica para o alfabeto, fiz-lhe a reclamação sobre o incidente à entrada.
Contou-me que recebiam e-mails de pessoas a dizer que estiveram à porta do JB mas não encontraram a Biblioteca, que os problemas de comunicação eram muitos e que quase não acreditava que eu, estrangeira, ali tivesse conseguido chegar; que era uma situação recorrente e que não se conseguia fazer nada.
Sorri, despedi-me e pensei que afinal não é só em Portugal que estas coisas acontecem: identifica-se um problema, a solução é duma facilidade atroz e, no entanto, encolhem-se os ombros e deixa-se a tradição continuar a ser como era.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Pincelada de Prado

Não me lembro rigorosamente nada do Prado. A entrada seria outra? A envolvência teria mudado assim tanto? O Alzheimer é já tão grande? Nada disso. Não me lembro porque nunca lá fui, embora conheça e seja amante de algumas das peças.
A visita mais prolongada a Madrid foi há alguns anos com marido e filho, como atestam algumas fotografias; a memória mais sólida desta viagem é o olhar fixo do Duarte, com 7 ou 8 anos, diante de Guernica. Já eu tinha tirado todas as medidas ao quadro, virado e revirado a cabeça para apreender mais esta e aquela perspectiva e ainda ele estava absorto num primeiro contacto prolongado, o do choque. Olhos vidrados, movia-se para tirar as pessoas do seu ângulo de visão e continuava a olhar, como alguém que põe uma garrafa à boca e só descansa na última gota.
Com a minha queda para estações e terminais de transportes estivemos em Atocha, mas não no Prado, ali mesmo ao lado. Não me lembro porquê, mas algo me diz que o meu marido deve ter decidido que os bilhetes eram caros e que já tinhamos visto muita coisa e assim ficámos. Se houve a discussão do costume apaguei-a da memória.
Agora, finalmente, visito-o como quem visita um velho amigo com quem estamos em dívida.
Não percebo nada de pintura mas sei o que gosto, o que me impressiona, o que me faz suster a respiração, o que me choca, o que me arrepia, o que me provoca lágrimas, o que me prende durante uma hora seguida, o que me deixa indiferente e o que detesto.
Comecei pelo choque negro de Goya. Composições horríveis que, não obstante, sempre me fascinaram quando via as imagens. Os originais deixaram-me estarrecida.
Passei para a magnificente luminosidade de El Greco e concluí que só vendo-os nos apercebemos da sua profundidade e da dimensão poderosa, que nos faz ter vontade de ajoelhar perante aquele tudo que se mete cá dentro duma forma inexplicável: não há imagens dos quadros que revelem a luz interior de cada composição e cada quadro é uma janela para dentro dele mesmo, um astro com luz própria.
Dei comigo com lágrimas nos olhos diante dum Rembrandt, sem saber quem era o autor, mas presa no acetinado da pintura.
Deixei Diego para o fim. Por ser uma espécie de dono do Prado, o anfitrião de todos os outros, por ser absolutamente maravilhoso, fazer parecer tudo tão fácil, tão próximo.
Não gosto de museus mas sempre que visito um sinto-me mais rica. E neste dia fiquei de barriga cheia.

Fazer nada

Gosto de me levantar cedo para poder fazer nada. Esse aparente nada transforma-se sempre num cumprimento ao dia por onde vejo os outros passar a correr sem o verem, como se fosse um filme diante dos meus olhos.
Tantos destinos, tantos compromissos, tantas pressas e eu de conversa com o dia, paciente com ele, a deixá-lo espreguiçar e vendo uma cidade inteira a pendurar-se-lhe nos braços.
Enquanto espero que o dia se torne adulto, e todos os outros ocupem o seu lugar nele sem sequer o verem, identifico barulhos e ruídos, vejo as sombras mudarem de posição, as luzes das ruas apagarem-se, as tarefas rotineiras abrirem-se como torneiras.
O céu veste-se de azul natural, dando-me o privilégio de não ver outras roupagens, cinzentas, que me fariam perder alguma boa disposição.
Depois deste exercício de observação estou pronta para começar a trabalhar, sem sono, consciente que cumpri um ritual religioso ou pagão, que me encaixei no dia e não o deixei passar por mim anónimo, sem história.
Ao fim do dia passo pelas Portas do Sol, enfio pela Arenales. A entrada no céu não deve ser muito diferente: entardecer quente, jazz tocado no meio da rua e uma banca de livros usados, como piscina de água cristalina e fresca. Passo os dedos pelos livros, leio os títulos e o papel velho sorri-me, como fazem os velhos amigos.
O próprio tempo senta-se neste fim de tarde, parado, e se cães houvesse não ladrariam, sossegados pela ternura da luz que se esvai.

A mi me gusta camiñar

Saio do hotel convicta que o passeio até à Universidade é coisa de crianças. Avenida Carranza abaixo, Alberto Aguillera acima e decido perguntar pela primeira vez. Vou bem, mas sugerem-me que apanhe um autocarro.
- No, gracias, a mi me gusta camiñar.
Como não fui explícita, vejo-me diante duma Faculdade da universidade, mas que não fica no campus.
Nova pergunta, nova sugestão sobre o meio de transporte a apanhar.
- No, gracias, a mi me gusta camiñar.
Ora bolas, não há-de ser assim tão longe, pensa a minha teimosia.
Com o estúpido objectivo de ver uma montra, eu que até nem gosto, acabo por me meter por um atalho e confiar no meu inconfiável sentido de orientação.
Nova pergunta, a mesma sugestão do autocarro, e logo eu:
- No, gracias, a mi me gusta camiñar.
Chego ao Museu da América e avisto o nome da Universidade do outro lado da estrada. Porém, o piso é desnivelado, a estrada é uma via rápida – que nem parece pois está tudo parado – e tenho que ir até ao fundo da rua e numa rotunda passar para o lado contrário até ao edifício que diz Universidade Complutense.
Finalmente!
A uma das entradas pergunto pela Biblioteca central e digo o nome da pessoa que me espera.
Dizem-me que não é ali e que apanhe o autocarro G, que me deixará à porta.
Há uma hora e quarenta e cinco minutos que saíra do hotel e agora sim, estava no momento certo de aceitar as sugestões de meia Madrid. Entrei a pensar que gastara 1,5€ por uns cem metros, mas nove paragens à frente os meus pés agradecidos sorriram-me pela primeira vez nesse dia.
O acolhimento foi efusivo, a simpatia grande; a meio da manhã na cafetaria o número de bibliotecários por metro quadrado fazia aquilo parecer um congresso, com a diferença que nos congressos só me falam os conhecidos e ali fui apresentada a todos, distribuindo apertos de mão e repetindo ‘Encantada’ como uma máquina. Mas a verdade é que estava mesmo encantada.
Quase às três da tarde saí e apanhei o primeiro autocarro que passou que, infelizmente, me deixou a meio caminho. As roeduras nos pés falaram mais baixo e fiz o resto do percurso a pé. Passei pelo hotel, tomei banho e saí fresca como uma alface para a tarde madrilena, quente e acolhedora.
Amanhã há mais, com trabalho sério, reuniões marcadas, mas a tarde será no Prado.

Ao lusco-fusco

A Plaza Mayor de Madrid não é a mais bonita de Espanha. Mas é imponente com a estátua equestre de Filipe III que lhe confere o enquadramento nos modelos de praça real da Europa, disseminados desde França, quando se pretendia incutir a soberania da figura real, mesmo em noites de chuva e lama, sem público.
Sentada a uma mesa perscruto os telhados da praça enquanto o lusco-fusco boceja. Antes de a noite tomar o seu lugar, já os candeeiros estão acesos, pedem-se tapas e cañas e dou com os olhos na improbabilidade: um estendal olha-nos de um dos telhados da praça, ondulante, branco, sereno, alheio à comida, aos turistas, à estátua, ao próprio tempo. São oito ou nove peças de roupa, algo distantes, como se a História se tivesse esquecido delas ali.
Pela enésima vez lamento não ter máquina fotográfica, mas desta vez lamento mais, lamento não conseguir correr atrás do lusco-fusco e trazê-lo de volta para segurar o estendal branco à luz rosada e alaranjada dum momento que não mais se repetirá.
Esqueço-me que tenho uma bolsa que me paga a alimentação e peço o mais barato da lista: frango; acompanhamento: batatas fritas, na modalidade de palha e na quantidade de onze. Comento com a minha irmã que sugere que a lógica seja a das senhas do carrossel, onde compramos dez viagens e nos dão uma senha grátis.
Os onze elegantes palitos fazem companhia ao cume, e só ao cume, dum peito de frango. Para quem se levantou às sete, trabalhou quase até às três e caminhou todo o resto da tarde, aquilo não é nada.
Ora bem, o que é que me apetece? Hum… Queijo! Peço um pratinho que me custa 17 euros e do qual só consigo meter metade. Instintivamente penso que já tenho pequeno-almoço para o dia seguinte: guardo a metade do queijo e o pão num guardanapo, com quatro americanos candidatos ao Biggest Loser a olhar-me. Apetece-me dizer-lhes:
- Já só há este… e é para mim…

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Caminhos confusos, mas negros.

Por ocasião da minha estadia espanhola – em hotel, não em residência, embora com pena minha… – reflecti sobre a importância das rotinas e em quanto elas nos ajudam de facto a perceber as pessoas, os povos, o estar.
Se vamos de férias e nos pedem 5 euros por uma garrafita de água concluímos que cada garrafa custa 5 euros. Porém, há que comprá-la onde as pessoas a compram e não onde essa espécie daninha dos turistas se abastece. O acto de repetir uma acção – almoçar, jantar, fazer compras de mercearia, andar de transportes (sem o cartão de turista!) – duma forma sistemática dá-nos uma percepção que a falta de rotina nos tira.
Ouço com frequência as pessoas dizerem que na França é assim e na Holanda é assado porque um dia me aconteceu isto ou aquilo… ninguém concede que seja a excepção. A minha falta de preconceitos, obrigada a todos os deuses de todos os olimpos, faz-me pensar sempre duas vezes perante qualquer coisa. Por norma, quando penso só uma engano-me.
Sabendo do número de desempregados e da situação económica da Espanha, estranhei que as esplanadas estivessem sempre cheias – o sempre é de manhã, à tarde e à noite, em vários locais da cidade e em diferentes tipos de estabelecimentos durante uma semana… penso que é um indicador suficiente para esta estatística de bolso.
Conto-lhes que por estas bandas já não é bem assim e eu, a exemplo de muitas pessoas minhas conhecidas, trago almoço de casa. Não tenho oportunidade de lhes explicar – porque só aconteceu ontem – que em passeio ao Algarve, a rua principal de Portimão estava deserta, com lojas já fechadas, apesar do calor de Verão que se fazia sentir, o que só vem confirmar o que lhes contei.
A conversa da contenção vai parar aos assaltos que, segundo eles, não aumentaram nem diminuíram, ao contrário do que acontece em Portugal: a cada passo sabemos de novas situações, algumas delas ligadas a dramas sociais que nos fazem engolir em seco.
Uma das pessoas que foi comigo ontem ao Algarve trabalha em seguros há 34 anos e agora depara-se com uma situação pela primeira vez: as mercearias procuram as seguradoras na sequência de assaltos frequentes. O que levam? Arroz, massa, azeite, fruta, legumes, detergentes. Não levam álcool, por exemplo.
O que diz isto do momento que estamos a viver? O que diz isto a quem passeia na avenida ao sol e tem uma vaga ideia que por baixo há um metropolitano, mas não nos apercebemos da sua natureza labiríntica escura, triste e coexistente?
Das conversas que mantive com colegas espanhóis sobre desemprego depreendi que a grande maioria das pessoas continua a procurar emprego na sua área de trabalho – assim eram os exemplos que me foram dados. Aqui vejo pessoas – não todas! – a procurar qualquer coisa. Parecem-me ser duas fases distintas do processo, bem distintas, apesar do número gigantesco dos que não têm trabalho em Espanha.
Das várias pessoas que conheci algumas delas estavam chegadas de férias com origens na Madeira e Porto Santo, Samarcanda, Londres, Cambodja e Vietname. Nada mau, hem?
Guardo facturas de uma bicazita num café normalíssimo a 1,60€ e paguei todos os dias 3 euros por um café e uma torrada com manteiga ao pequeno-almoço, torrada que, convém que se diga, é uma fatia de bimbo, não duas.
Que dizer? Estou confusa.

domingo, 18 de setembro de 2011

Um toque de canela

Amanhã vou para Madrid fazer Erasmus. Erasmus Staff, não como aluna mas como profissional, o que não deixa de ser Erasmus. Sempre quis experimentar estudar no estrangeiro, mas nunca o fiz. A minha irmã teve essa oportunidade ainda no liceu e não a queria aceitar. Lembro-me da minha insistência. Mais tarde foi para Rennes em Erasmus e fala desse período como um dos melhores da vida dela.
Trabalhando numa universidade lido com todo o tipo de alunos, acabando por me transpôr para cada um deles, como os pais fazem com os filhos, lidando com alunos Erasmus e sentindo uma inveja diária que, apesar de viajar, pensei que fosse morrer comigo. Mas afinal não vai ser assim.
Hoje passei parte do dia com a minha grande amiga e fiz a habitual caminhada, mais curta, mas toda dentro de água. Combinámos ir ao cinema à noite, numa espécie de despedida da semana, uma vez que estamos juntas todos os dias. Porém, não fomos, por circunstâncias várias cada uma ficou na sua casa.
Nada é por acaso. Fiquei com o meu filho e quando ele saiu, no meio de muitos canais de televisão, um sotaque estranho chamou-me à atenção. Deixei-me ficar a ouvir sem ler as legendas e percebi meia dúzia de palavras, soltas, sem sentido, mas quentes. Era em grego. Nunca dei conta que o grego e o português dessem assim a mão, mas também nunca o tinha ouvido com atenção. O filme chamava-se Um Toque de Canela e foi o mais belo que vi nos últimos tempos, talvez anos. Lembra o Cinema Paraíso, até o protagonista é parecido com o Salvatore em criança e em adulto.
A ternura baila docemente no ecrãn, salta dele e cai-nos no colo. Apetece-nos rir e chorar, passar a palma da mão pelo rosto daquelas pessoas cujos sentimentos são tão nossos, são tão a meias. A música é suave como chuva miudinha, mas faz falta na exacta medida em que se mostra; o passado a atrapalhar o curso do presente e do futuro, e a calma... há uma calma feita seta que trespassa toda a acção conferindo uma serenidade luxuosa a cada imagem. Numa cena vemos vários estendais com lençóis brancos esticados, que formam um gigantesco estendal, coroado por um padre que toca um sino ritmadamente. O domínio do branco que ondulava ao de leve fez-me pensar que na Terra também existe Céu.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Outras leituras

Concorri a um concurso cujos resultados apenas se divulgam no Correio da Manhã, essa catedral do sangue e da tragédia, razão pela qual tive que comprar um exemplar. Em busca do meu nome corri o jornal de ponta a ponta dando atenção a tudo pois, experiente nesta coisa dos concursos, sei que os resultados podem ser editados em pé de página, fonte 6 e só não aparecem com as letras ao contrário, como as soluções das palavras cruzadas, porque ainda não se lembraram. Os anúncios são caros e eles já têm que pagar os prémios, há que poupar!
Depois de ter lido todas as gordas pensei o que teria escrito Kafka se tivesse tido acesso a estas fontes de informação… ninguém sabe.
Fiquei a saber que em Trancoso morreu uma pessoa que seguia numa carroça; há um cão cujas orelhas medem 65 centímetros; José Sócrates aparece numa fotografia de tal forma colocado que parece ter uma orelha tão grande como a do cão; há cada vez mais gente a mostrar e a deixar fotografar mamas e rabos; há um senhor que compra antigo/moderno, mas não diz o quê… deve ser código…; três contactos diferentes compram coisas banais como chifres e presas de rinocerontes; há quem compre socata e quem venda biblôs; quem afirme ‘A crise acaba aqui. Ganhe 300/500 € por semana. C/ uma loja tipo franchising de Colagem de Plástico na sua zona’ e eu reforço, ora aqui está uma oportunidade, uma coisa que faz sempre falta.
Como se estivesse possessa, detive-me nos professores, videntes, pais, mestres, curandeiros, terapeutas, cartomantes, médiuns, tarólogos, cientistas, espiritualistas, astrólogos, que são uma espécie de farmácia pois tratam de tudo, desde a ‘alta magia negra’ até à ‘aproximação rápida e afastamento total’, sendo que esta é a minha favorita: imagino dois feiticeiros, de capa modelo Merlin, chapéu bicudo tradicional, barbas até aos joelhos, a jogar Vai-Vem… aproximação rápida… afastamento total… aproximação rápida… afastamento total… até se cansarem.
O meu nome não estava na lista dos premiados, razão pela qual voltarei a concorrer e a comprar novamente o jornal lá para o fim de Outubro. Estou ansiosa.

Obrigadinha, sim?

Uma das minhas rotinas diárias matinais consiste em deixar o carro no parque de estacionamento da estação de metro Amadora-Este e seguir até ao centro de Lisboa, qual minhoca que já tem o caminho desbastado. No verso da medalha está outra rotina: entrar no carro e ir até casa.
Nas últimas semanas o chão do parque de estacionamento mete medo: de dez em dez metros há sinais de vidros partidos e a probabilidade que isso aconteça por vandalismo é total. Não sendo fatalista, mas confesso que é com certo receio que vou buscar o carro todas as tardes.
À hora a que saio do metro o parque está já meio vazio e ao mesmo tempo que tiro o carro, muitos outros lugares vão ficando livres o que permite ver os vidros, como se fossem manchas no chão.
Ontem não foi assim.
O parque estava cheio que nem um ovo e a quantidade de pessoas a entrarem no metro era invulgarmente maior do que a que saia. Motivo? O estádio da Luz recebia um clube estrangeiro e os adeptos, vestidos a rigor, encaminhavam-se para o jogo. Já me tinha cruzado com eles lá em baixo, jovens com diferentes camisolas mas todas do clube, executivos de fato e gravata com o cachecol dobrado na mão.
Pela cegueira do jogo ou pela falta de vista inata, o que é certo é que as saídas do parque estavam tapadas com carros estacionados!
Formou-se fila para sair, geraram-se incómodos com inversões de marcha colectivas obrigatórias face à impossibilidade de se passar, um ou dois teimosos partiram espelhos laterais quando quiseram meter o Rossio na Rua da Betesga, enfim, uma confusão causada pela falta de respeito ou, noutras palavras, o início da acção hooligan.

Como é óbvio!

A propósito do quociente de excentricidade daquilo a que a revista Sábado chamou ‘Cursos Alternativos’ e onde consta a licenciatura em Ciências Equinas e os mestrados em Gestão e Manutenção de Campos de Golfe, Ciências da Paisagem e, o que arrebanhou os pontos máximos da excentricidade, Ciências da Complexidade, tive uma conversa interessante sobre as Ciências do Óbvio.
Uma das coisas que mais podemos agradecer aos outros é porem-nos a pensar. Levarem-nos a sistematizar o… óbvio.
Percorrendo o Google temos uma surpresa: há quase cinco milhões de entradas em inglês e mais de 700 entradas para o termo ‘Ciência do óbvio’, das quais sete são de Portugal. Estaremos despreocupados com o óbvio aqui no jardinzito à beira mar plantado?
Duma leitura muito rápida e na diagonal percebi que todos a querem apadrinhar, chamando ciência do óbvio à sua disciplina para dessa forma lhe legitimar prioridade e importância sobre as demais, como se assim se auto colocassem num pódio de indiscutível autoridade, como se dissessem: a medalha é minha, logo, o resto são cantigas…
Obviamente, muito há a dizer sobre o assunto que, sendo óbvio, nem sempre é interior, tal como o casaco que vestimos, do qual conhecemos os bolsos, os botões, a gola, o forro, e dentro do qual nos metemos com destreza, mas não faz parte de nós.
Para mim é óbvio que tenho que aprender até morrer. Está inato em mim, seja uma aprendizagem planeada numa escola, com inscrição e todas essas administrativices ou seja pelo prestar atenção aos outros, ao que dizem, ao que trazem de novo. Mas sendo tão óbvio, não ando sempre a falar do assunto… porquê? Porque é óbvio!
Para mim é óbvio que as férias constituem um período sagrado do ano. Desejo-as fisicamente e faço delas uma prioridade na gestão do tempo, gasto com elas o meu dinheiro, preterindo por exemplo a aquisição dum carro, e glorifico-as interiormente como algo que eu amo. Assim, estranho que me questionem porque raio lhes dou tanta importância? Sendo óbvio para mim, não percebo a dúvida alheia.
Dentro dos óbvios há pelo menos quatro categorias: a científica – se juntarmos dois mais dois, obviamente temos quatro – a previsível – com um tempo assim, obviamente posso ir à praia – a social – se o meu vizinho tem, obviamente que eu também tenho que ter - e a inata, que são os óbvios interiores, explicáveis ou não.
Um exemplo explicável: porque gostam os bebés de ser embalados? Porque durante nove meses se habituaram a baloiçar na barriga da mãe! Em consequência, obviamente, que teremos sempre em nós um certo nomadismo!
Inexplicável, a minha sede de leitura. Habituei-me cedo, é certo, e isso pode conter alguma explicação, mas não explica aquilo que para mim é óbvio: sei que um novo livro é uma nova viagem, uma nova aprendizagem, um crescimento. Mais uma vez, é óbvio para mim, não para todos os outros.
A gestão da minha vida passa por milhares de óbvios que sendo tão óbvios nem penso neles; porém, desde ontem forcei-me a elencar alguns: perante um obstáculo fazer tudo menos desanimar; sorrir o mais possível; nunca desincentivar os outros, apesar de ser muito crítica; ver tudo de vários pontos de vista; não sabendo, perguntar para ficar a saber; não seguir modas a menos que goste delas; confiar em quem sabe mais que eu sobre determinada matéria, entre outras.
Sobre o assunto, obviamente, muito fica por dizer.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O meu reino por um telemóvel!

Ontem o metro revelou-se um manancial melhor que nunca: não uma, mas duas conversas dignas de registo, vieram parar aos meus ouvidos.
Em pé iam dois homens que conversavam sobre a capacidade dos telemóveis afectarem os comandos de abertura dos carros quando colocados lado a lado! Um deles, descrente, abanava a cabeça face à certeza do outro que ia argumentando com explicações tão técnicas que nunca me ocorreria associá-las a uma chave… Estou indecisa sobre se passarei a usar duas malas para levar as chaves e o telefone em secções separadas.
Mas diante de mim seguiam duas jovens cuja conversa devia ter sido gravada para que a humanidade pudesse ter acesso a mais uma novidade, fruto da criatividade lusitana, da necessidade premente de contacto que todos sabemos ser desesperada.
Uma das raparigas ia dar um jantar – acho que ainda vai… - mas a mesa terá uma particularidade única no mundo: para além de uma plêiade de pratos e talheres e copos e marcadores e guardanapos e flores haverá também… - que rufem os tambores! – um lugar para o telemóvel de cada comensal!
Mas como é que ainda ninguém se tinha lembrado disto? Como é que sobrevivemos até hoje?
A interlocutora esteve à altura e rasgou sorrisos e elogios reforçando a originalidade da coisa. A promotora do jantar explicou que os telefones repousarão nuns pratinhos parecidos com aqueles onde se servem as azeitonas e disse-o com olhos brilhantes, tresandando alegria, tão contente consigo mesma que o lugar onde se sentava até ficou mais pequeno.
Isto fez-me lembrar uma historieta que se conta lá na terra sobre dois sujeitos que foram a um jantar fino, eles que tratavam a enxada por tu o dia inteiro e comiam a merenda com as mãos, sentados a uma sombra. Durante o jantar comeram azeitonas e trocaram olhares sobre o que fazer com os caroços. Quando saíram perguntaram-se mutuamente por eles; um abriu o bolso do casaco mostrando-os e o outro confessou que os tinha engolido.
A bem da verdade já me passou pela cabeça meter um ou outro telefone pela boca abaixo dos donos. Talvez seja uma estratégia…

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Uma questão de sotaque

Não sendo Paris ou Nova Iorque, Lisboa tem uma polifonia assinalável de sotaques no metropolitano, nos quais reparo pois a simples audição é um passaporte para os mais diversos locais. Espanhóis, são sempre muchos, e a estação onde entro ainda regista mais pela proximidade com o Instituto Cervantes. Ingleses, a lots, principalmente em dias de jogos de futebol, maning de africanos, очень russos e ucranianos, todos com o talento de me encantarem, uma vez que qualquer língua estrangeira aos meus ouvidos é sinfonia de criar pele de galinha. Quem serão e o que andarão a fazer? Repararão em mim, quando a situação é inversa? Onde terão ido hoje? Gostaram? São muitas, mas sempre as mesmas, perguntas que me coloco no silêncio que me rodeia enquanto companheira ocasional de viagem dos estrangeiros.
À excepção dos grupos ligados ao futebol, que são sempre muitos, barulhentos e, quase sempre, de cerveja na mão, os estrangeiros não são alvo de muitos olhares por parte dos passageiros.
Na sexta-feira passada isso não aconteceu. A senhora devia ter os seus sessenta anos, falava ao telefone alto e bom som e só à terceira frase é que consegui identificar-lhe a origem: era portuguesa! Toda a gente seguia a conversa com atenção: a senhora informava quem quer que estivesse lá do outro lado que estava no metro, na estação X e iria sair na Y, que havia muita gente, mas não se tinha perdido e intercalava com algumas gargalhadas que, verdade verdadinha, também tinham sotaque de S. Miguel. Ainda esperei que algures pelo meio da prestação de informações ela falasse na cana de pesca, mas tal não aconteceu e os sorrisos dos atentos passageiros não se transformaram em descomunais gargalhadas. Na estação anunciada a senhora saiu carregando uns sacos e a carruagem voltou ao barulho normal que se tinha silenciado ligeiramente para dar destaque ao maravilhoso sotaque  açoriano.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

As aparências iludem

A cinquenta passos da minha casa há uma mercearia, fugaz pegada do comércio tradicional de bairro. Com uma frequência de, pelo menos, uma vez por semana, sou cliente. A dona sempre atarefada atrás ou à frente do pequeno balcão, a deitar olhares ao frigorífico, não vá algum cliente deixá-lo aberto.
Uma coisa que sempre me fez confusão foi ver o marido permanentemente inactivo, a olhar para ela, como se fosse um professor a avaliar o desempenho do aluno. Ora sentado numa caixa vazia, ora em pé, com um desplante enorme, enquanto a mulher se desunha para atender toda a gente, principalmente às sete da tarde, quando regressamos do trabalho e nos lembramos que não temos isto ou aquilo, diferentes os produtos pretendidos, igual a pressa que se nos impõe. Noutras ocasiões o homem estava sentado no carro, diante da mercearia, e ela carregava as caixas de hortaliças e fruta para dentro para fechar a loja. E ele sentado a olhá-la, polícia, ciumento, professor. Não sei. Trabalharia ele o dia todo e estava tão cansado que nem dava uma mãozinha à mulher? Não sei. Aquela postura deixava-me com um nó na garganta.
A meio do Verão, talvez em Julho, fui à mercearia e fui atendida por uma jovem. Pensei que o casal estava de férias e tivessem contratado a rapariga. Passaram as férias e esta semana voltei à mercearia, atrás de cujo balcão se mantinha a mesma jovem. Perguntei-lhe pela senhora e ela esclareceu-me que já lá não estava e lhe tinha vendido a mercearia a ela. Confessei o meu desconhecimento e a nova proprietária, ou porque lhe apetecia falar, ou apenas ser simpática com uma cliente que ela ainda não sabia ter alguma fidelidade, explicou-me que a antiga dona não podia continuar a trabalhar face ao problema do marido, uma doença complicada que obrigava a um acompanhamento cada vez maior, difícil de fazer presa ali na loja. Devo ter aberto os olhos de espanto à menção do espantalho que por ali se passeava sem fazer nada, e ela explicou que eles viviam ao fundo da rua, aquela ali, conhece?, e ele, mesmo doente, preparava o jantar e depois, fazendo um esforço incrível, vinha todos os dias buscar a mulher ao trabalho e iam juntos para casa. Nos últimos tempos já não conseguia andar, mas podia conduzir, por isso vinha de carro e esperava por ela ao volante, numa manifestação de amor e carinho.
Paguei em silêncio e sai da mercearia com uma certa danação com a minha pessoa, não evitando que duas lágrimas escorregassem cara abaixo, e a pedir interiormente desculpa.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Limites muito invisíveis

Os pesadelos são fenómenos cuja horroribilidade não se consegue descrever. Naquele momento o medo é tão forte que apetece morrer. Na manhã seguinte contamo-los e ficamos com ar de parvos perante uma descrição de coisas nada apavorantes. Como se processará o medo? Como é que ele pesa tanto quando estamos a dormir pois, se a situação fosse real, seria tão simples, ainda que esquisita, que dava sono.
Estou deitada de barriga para cima na cama do meu filho e na cabeceira há uma torneira. Em cima de mim há pratos, talheres e diversa loiça suja que tento lavar sem me levantar, ou seja, apanho os enormes pratos verdes onde comemos todos os dias, fazendo leves movimentos de pernas para que não escorreguem quando levanto os braços na direcção da torneira. Desta forma anormal vou lavando a loiça. Tenho um zumbido nos ouvidos (tenho mesmo!) que se torna cada vez maior e, enquanto passo os pratos por água, o zumbido transforma-se em palavras e faço a horrível descoberta de perceber que tenho um homem a falar dentro da cabeça. Sei que são palavras, mas apenas percebo a repetição do meu nome. Escondo-me nos lençóis, não querendo saber da loiça, mas ele está dentro da cabeça e continua a falar. Peço que a noite passe depressa e, num arremesso de coragem, espreito por entre os lençóis temendo ver uma coisa horrível, mas que não sei dizer o que seria. Quando espreito vejo o meu quarto, estou acordada na minha cama, rodeada de florinhas cor-de-rosa, que enfeitam o lençol. Levanto-me sem medo e vou beber água. Não tenho dificuldades em adormecer e hoje de manhã lembro-me perfeitamente do medo como se fosse um objecto que tivesse visto.
Como não sou medrosa aflige-me sentir este pavor quando durmo e gostava de perceber que canais são percorridos e por o quê, para nos fazerem sentir estes limites.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Vinte escudos

A minha mãe conta que numa ocasião, a propósito duma deslocação à Feira de Moura, os meus avós levaram uma amiga dela, de quem não recordo o nome. Os pais ou familiares da garota deram-lhe a histórica quantia de vinte escudos que ela, ufana, guardava e mostrava e voltava a guardar para voltar a mostrar.
Chegados à Feira depois duma viagem de mais de vinte quilómetros em carro de burro a rapariga quis usufruir dos luxos inerentes à sua carteira. Pretensão legítima.
Porém, dos doces à roupa, passando por loiças de barro, brinquedos e malacuecos* quando era preciso pagar a moça virava-se para o meu avô e pedia-lhe que lhe adiantasse o dinheiro pois ela só tinha a nota de vinte escudos para a qual, com certeza, os feirantes não teriam troco.
Depois de mais um par de sapatos e uns metros de chita para uns vestidos e do consequente pedido de pagamento, o meu avô disse-lhe que lhe desse os vinte escudos a ele, que o dinheiro que ela já gastara a mais ele o pediria ao pai dela quando chegassem à aldeia.
Ontem fiquei a dever o pequeno-almoço, os cigarros, o almoço e compras de mercearia ao fim do dia. Tudo porque tinha uma nota de cem euros. Hoje fiz a mesma volta pagando dívidas, agradecendo, desculpando-me.
Não deixo de pensar na cara comum a todos os que me fiaram: de despreocupação. A manifestação dessa confiança deu-me uma alegria enorme, não porque pensasse que alguém me negasse qualquer coisa das que comprei, mas pela forma como o fizeram, tanto mais que a todos sem excepção eu já vira pedirem desculpa e negarem que clientes levassem o que pretendiam, com os olhos postos no chão. E afinal, nos dias que correm, não podemos levar a mal que nos digam Não. Eu digo, Obrigada.
*Malacueco é o nome dado no Alentejo a uma fartura redonda.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O que chateia mesmo é...

A grande injustiça que se consubstancia no mau tempo nesta altura do ano, que nos deu um Agosto tão pobre em sol e um Setembro com ar de Novembro, acaba de ser explicada na rádio: foram despedidas várias mãos cheias de funcionários dos tribunais quando deviam eram ter sido admitidos mais! Não havendo quem trate de toda aquela papelada isto é um regabofe com o Outono a exercer a sua jurisprudência sem ninguém lhe ter pedido nada. Ou então, como diz Oscar Wilde ‘O Velho Mundo tem tal excesso de população que não há forma de se conseguir clima decente para todos’.
Talvez por sermos muitos, afiam-se as facas para os cortes na Saúde: vai escorrer sangue, quentinho, cabidela não há-de faltar, depenados já estávamos, isto é uma sequência lógica. As dores de cabeça causadas pelo preço dos livros escolares serão tratadas à moda antiga, com rodelas de batata à volta da testa e com um lenço a apertar e quem decida falecer nem vale a pena chamar os Bombeiros Voluntários de Mafamude, é falecer já!
Repete-se até à exaustão a expressão ‘corte na despesa’ que quando é verdadeiramente interiorizada significa que somos todos azuis, mas uns são azuis-escuros e outros azuis-claros.
Aumentam os impostos, fecham empresas, aumentam os impostos, despedem-se pessoas, aumentam os impostos, a segurança social cambaleia em estado terminal, anunciando a morte a qualquer momento e nós rezamos que não, por favor, e pedimos mais por ela que por qualquer elemento da família, amigo ou conhecido que esteja com os últimos estertores.
E no meio disto tudo o que chateia mesmo, mesmo, mesmo, é Setembro não ter um único feriado. Bolas!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Quem te avisa...

O dia 1 de Setembro de 1991 foi um bom dia. Faz hoje 20 anos. Eu de branco, saia curta e coroa de flores na cabeça. Ele de fato cinzento-escuro, gravata de seda vermelha com pequenos floreados amarelos e verdes, camisa branca. As dores de cabeça que aquela gravata me deu…
Dei com os olhos nela numa montra na baixa. Arrastei as pressas e entrei com a intenção de a comprar, aquela coisa tão linda tinha que me acompanhar no dia do meu casamento. O preço fez-me recuar. Até a mim. Revirei os olhos a pensar que não podia mentir ao meu quase-quase-quase marido, pois se lhe começava a mentir antes do casamento, como havia de ser depois, e teria que lhe dizer o preço e se o dissesse era muito provável já nem haver casamento.
Da mesma forma que se dão nomes aos síndromas, de Estocolmo, de Nightingale, nomes às operações policiais, às missões do exército, eu comecei nesse dia uma longa série de Dilemas e este ficou conhecido como O dilema da gravata. Acabei por comprar outra que aos meus olhos parecia um cardo, seco, murcho, sem cor, mumificado, sem seda, quando muito de poliéster, toda ela uma nódoa, feia como a fealdade em forma de gravata. Os defeitos eram tantos que só havia uma coisa a fazer: ir comprar a outra e correr todos os riscos.
Quando voltei à loja, afogueada, como se fosse resgatar alguém da prisão, inocente ainda por cima, já tinham vendido a gravata! Barafustei, esperneei, chorei e prometeram arranjar-me outra igual, última do lote, esquecida num armazém sabe-se lá onde e eu ouvia o homem falar e as sensações misturavam-se, ora o alívio, ora o peso da culpa por gastar tanto dinheiro, pois, com certeza, vendo o meu pranto iam aproveitar-se e obrigar-me a pagar o aluguer do armazém onde estava a gravata durante os próximos anos. Seja! Tudo vale a pena quando a alma não é pequena, dito que se aplica aqui e em qualquer outra ocasião pois é tão bonito que fica sempre bem.
Lá me depositaram a gravata nas mãos e já ouve mães menos emocionadas por segurarem pela primeira vez nos seus filhos, comparadas comigo, naquele momento. Rezei para que não me perguntassem o preço e se não me pedissem confissão, também não a faria de livre vontade. Acabei por dizê-lo, dias mais tarde. Não houve dramas nem ameaças de divórcio, mas o esbulhagar de olhos foi conclusivo: foi uma vez sem exemplo!
De manhã encontrámo-nos juntamente com os convidados à porta do Registo Civil de Sintra. Onze horas, eu pontual, ele atrasado. Como sempre. Talvez esta quebra de protocolo da noiva chegar primeiro tivesse ditado o fim do casamento e não tivéssemos esperado que a morte nos separasse.
A entrada para o Registo Civil faz-se através dumas escadas encimadas por um quiosque e ainda hoje se arrancam gargalhadas ao vermos as fotografias com as revistas pornográficas penduradas nos escaparates a servirem de cenário aos sorrisos da noiva e dos respectivos convidados que, para matarem tempo na espera pelo noivo, foram tirando fotografias, agora com uns primos, depois com amigos, mais com este menino, hoje um homem, ele próprio a fazer planos de casamento. Não te cases, rapaz, não te cases, quem te avisa, teu amigo é!